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Thais

31/05/2016

Precisamos falar sobre isso?

Se fossem apenas 33 homens, seria possível matar todos, ou enviá-los pra bem longe, e isso resolveria todo o problema. Mas não. É necessário que não exista impunidade com esses, claro, mas se uma mudança muito mais ampla não chegar, esses 33 serão substituídos por outros 66, e outras tantas meninas não terão paz.
O que faz um homem estuprar uma mulher? Acredito que o mesmo sentimento que faz com que sejamos violentos e violentas uns com os outros. Em algum momento, o outro me ameaça. Ainda que o outro seja um completo desconhecido: pode ser por aquilo que ele representa. Antes de te violentar, a pessoa olha pra você e pensa: Quem ela pensa que é? Está merecendo uma lição. Está merecendo uma sacudida pra ficar esperta. Está precisando saber quem manda aqui.
Sim. Não existe desejo sexual incontrolável. O impulso do estupro é subjugar o outro. Colocá-lo abaixo dos pés, humilhar, fazer com que o outro entenda que não merece ser tratado como um ser humano. Nossas diferenças fazem com que eu não me reconheça em você. Essa parece ser a origem que torna possível a alguém se permitir ser violento com o outro.
Enquanto vítima, de repente você se vê numa situação aterradora: você está vulnerável, não tem como se defender, enquanto o outro te subjuga, te humilha, te amedronta, te ameaça, te silencia, te machuca. TODA mulher já passou por isso.
A cultura do estupro é a cultura do “vai apanhar pra ficar quieta”, “vai sentir dor pra perceber”. Afinal, quem é essa mulher que acha que pode vestir essa roupa? Quem é essa mulher que acha que tem o direito de andar sozinha? E no limite, mesmo quando não há nenhum desses elementos: Quem é essa mulher que ousa existir?
Nossa cultura, ainda hoje, nos ensina que o mundo pertence aos homens. Que eles, e apenas eles, tem o direito de ir e vir. Que eles tem o poder sobre o próprio corpo e sobre o alheio. Afinal, o homem que te faz uma cantada nojenta na rua é o mesmo que pede desculpas assim que percebe que você está acompanhada. Não a você, mas ao homem que estiver te acompanhando.
Estamos tão aquém... Há tanto a fazer! Pra vencer essa cultura, teremos que andar tanto, ampliar tanto o olhar, perceber tanto coisas que todos os dias nos passam... Que dá até medo que seja demais, e que não saibamos fazer isso.
A cultura do estupro é a cultura da violência. E se reinasse somente entre os homens, metade do problema já estaria resolvido. Mas muitas mulheres reproduzem a lógica de combater e subjugar a outra. De causar dor para que a outra “aprenda”. De justificar um estupro no comportamento da irmã porque se a culpa fosse dela eu teria a sensação de ter algum controle sobre isso, e não precisaria ter tanto medo.
Nunca. Nunca. Vamos repetir como um mantra. Vamos precisar usar a lógica inversa. Jamais, de forma alguma, podemos ter coragem de violentar ou machucar quem a gente ama. Amor e violência simplesmente não devem coexistir. Não podemos fazer. Não podemos aceitar que o outro nos faça. Há que haver formas. Jamais também machucar o estranho. Ele é uma pessoa, ele também tem voz, sentimentos, ele ama alguém, ele sente frio, e desespero, e dor, e medo, tanto quanto nós mesmos.
E quando a situação chega no limite do estupro, resta abraçar a vítima, chorar junto com ela. Compartilhar da verdade estarrecedora de demorar para realmente se dar conta da violência a que foi submetida. Parece impossível de acreditar: Quantos a conheciam? Quantos conviviam junto? Pra quantos ela já não sorriu numa tarde de verão antes disso? Uma vez perdida, a inocência não se recupera. A caixa de Pandora está aberta e os 33, um após o outro, aparecem sorridentes e orgulhosos, certos da impunidade, cheios de razão.

Lá no fundo da caixa fica a menina. E eu desejo muito que seus olhos possam brilhar de novo. A esperança de que exista o amor. Não apenas o amor romântico, mas aquele amor que te olha nos olhos, que te abraça, que te diz “estou contigo”, que escuta. Acolhida. Coração que se aquece quando nossos braços todos se juntam. Suporte. Confiança. Haverá reconstrução. Enquanto estivermos vivas. Sempre.


23/05/2016
Essa tal desconstrução...
Me parece que desconstrução seja a palavra do nosso momento. Muita gente fala em desconstruir. Desconstruir preconceitos, desconstruir ideias ultrapassadas, desmontar, desvendar o que está oculto por baixo do que parece sólido.
Sou uma das entusiastas da desconstrução. Mas acredito que, mais que no cenário social, mais que na história política, desconstruir é primeiro ter a coragem de perguntar quem eu sou. Todo adolescente faz isso: em algum momento, começa a se perguntar quem é de verdade. Quem é, liberto do que os pais o fizeram acreditar que era. Quem é por si mesmo, independente de ensinamentos alheios. Adolescentes fazem, encontram as respostas que tem a maturidade de encontrar naquele momento, e alguns nunca mais repetem a façanha. Adultos, já não temos mais a mesma coragem. Porque essas resposta são muito difíceis. São difíceis porque estamos imersos numa cultura que todos os dias nos ensina quem somos, o que achamos bonito ou não, do que gostamos, o que desejamos. Me lembro de um antigo comercial de cigarro, onde se dizia “eu gosto disso, você daquilo, e tudo bem. Pelo menos alguma coisa a gente tem em comum” – dizia a moça sorridente, apontando o cigarro. (nas entrelinhas: somos gente boa porque fumamos a mesma marca de cigarro). E se aquilo já não fosse suficientemente ridículo, a frase que se propagava sobre a marca de cigarro era “questão de bom senso”.
Bom senso. Acho graça nesse termo porque ele não significa absolutamente nada. O que é bom senso? Mesma coisa acontece com o termo “equilíbrio”. Parece ser consenso que a vida precisa de equilíbrio, mas quando perguntamos o que é afinal de contas o tal “equilíbrio”, há tantas respostas quanto há pessoas. Para todos parece ser óbvio o que significa ser “equilibrado”. Ultimamente, eu tendo cada vez mais a desconfiar do óbvio.
Um dia, eu passei a questionar todas as minhas certezas. Elas foram caindo, uma a uma. E doeu. Porque onde não há certezas, não há também garantias. E ainda que as garantias sejam normalmente ilusórias, tendemos a gostar delas, pois nos oferecem segurança. Bauman já falava sobre a dicotomia entre liberdade e segurança: para ter mais liberdade, precisamos entregar parte da segurança e vice-versa. Mas, e aí mora a grande ironia, uma liberdade sem segurança é bem pouco livre, e uma segurança sem liberdade não é muito segura... Então... o que nos resta?

Restamos apenas nós. Criaturas vivas. Criaturas em desconstruções e descobertas. Criaturas subversivas e perguntar-se rebeldemente quem são. A ter a coragem de escutar respostas que transcendam o que aprendemos. A ter a coragem de mergulhar lá onde mora o silêncio, lá onde ninguém alcança, aquela voz quase esquecida da mulher livre das convenções que mora no nosso porão e arranha as paredes a nos gritar a verdade de quem ela é. Quem é mulher já sabe, ou um dia há de saber, quem é a louca do porão que trazemos em nós. Nós a escutamos, especialmente em nossos dias de tempestade. A louca que nos incomoda com sua sensatez e honestidade ao nos dizer selvagemente quem é. Eu a escuto. Tem dias que. 

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