Se fossem
apenas 33 homens, seria possível matar todos, ou enviá-los pra bem longe, e
isso resolveria todo o problema. Mas não. É necessário que não exista
impunidade com esses, claro, mas se uma mudança muito mais ampla não chegar, esses 33
serão substituídos por outros 66, e outras tantas meninas não terão paz.
O que faz um
homem estuprar uma mulher? Acredito que o mesmo sentimento que faz com que
sejamos violentos e violentas uns com os outros. Em algum momento, o outro me
ameaça. Ainda que o outro seja um completo desconhecido: pode ser por aquilo
que ele representa. Antes de te violentar, a pessoa olha pra você e pensa: Quem
ela pensa que é? Está merecendo uma lição. Está merecendo uma sacudida pra
ficar esperta. Está precisando saber quem manda aqui.
Sim. Não existe
desejo sexual incontrolável. O impulso do estupro é subjugar o outro. Colocá-lo
abaixo dos pés, humilhar, fazer com que o outro entenda que não merece ser
tratado como um ser humano. Nossas diferenças fazem com que eu não me reconheça
em você. Essa parece ser a origem que torna possível a alguém se permitir ser
violento com o outro.
Enquanto
vítima, de repente você se vê numa situação aterradora: você está vulnerável,
não tem como se defender, enquanto o outro te subjuga, te humilha, te
amedronta, te ameaça, te silencia, te machuca. TODA mulher já passou por isso.
A cultura do
estupro é a cultura do “vai apanhar pra ficar quieta”, “vai sentir dor pra perceber”.
Afinal, quem é essa mulher que acha que pode vestir essa roupa? Quem é essa
mulher que acha que tem o direito de andar sozinha? E no limite, mesmo quando
não há nenhum desses elementos: Quem é essa mulher que ousa existir?
Nossa cultura,
ainda hoje, nos ensina que o mundo pertence aos homens. Que eles, e apenas eles,
tem o direito de ir e vir. Que eles tem o poder sobre o próprio corpo e sobre o
alheio. Afinal, o homem que te faz uma cantada nojenta na rua é o mesmo que pede
desculpas assim que percebe que você está acompanhada. Não a você, mas ao homem
que estiver te acompanhando.
Estamos tão
aquém... Há tanto a fazer! Pra vencer essa cultura, teremos que andar tanto,
ampliar tanto o olhar, perceber tanto coisas que todos os dias nos passam... Que
dá até medo que seja demais, e que não saibamos fazer isso.
A cultura do
estupro é a cultura da violência. E se reinasse somente entre os homens, metade
do problema já estaria resolvido. Mas muitas mulheres reproduzem a lógica de
combater e subjugar a outra. De causar dor para que a outra “aprenda”. De
justificar um estupro no comportamento da irmã porque se a culpa fosse dela eu
teria a sensação de ter algum controle sobre isso, e não precisaria ter tanto
medo.
Nunca. Nunca.
Vamos repetir como um mantra. Vamos precisar usar a lógica inversa. Jamais, de
forma alguma, podemos ter coragem de violentar ou machucar quem a gente ama. Amor
e violência simplesmente não devem coexistir. Não podemos fazer. Não podemos
aceitar que o outro nos faça. Há que haver formas. Jamais também machucar o
estranho. Ele é uma pessoa, ele também tem voz, sentimentos, ele ama alguém,
ele sente frio, e desespero, e dor, e medo, tanto quanto nós mesmos.
E quando a situação chega no limite do estupro, resta abraçar a
vítima, chorar junto com ela. Compartilhar da verdade estarrecedora de demorar
para realmente se dar conta da violência a que foi submetida. Parece impossível
de acreditar: Quantos a conheciam? Quantos conviviam junto? Pra quantos ela já
não sorriu numa tarde de verão antes disso? Uma vez perdida, a inocência não se
recupera. A caixa de Pandora está aberta e os 33, um após o outro, aparecem
sorridentes e orgulhosos, certos da impunidade, cheios de razão.
Lá no fundo da
caixa fica a menina. E eu desejo muito que seus olhos possam brilhar de novo. A
esperança de que exista o amor. Não apenas o amor romântico, mas aquele amor
que te olha nos olhos, que te abraça, que te diz “estou contigo”, que escuta.
Acolhida. Coração que se aquece quando nossos braços todos se juntam. Suporte.
Confiança. Haverá reconstrução. Enquanto estivermos vivas. Sempre.