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quarta-feira, 13 de julho de 2016

ACORDA NEGA! por Cris Couto




Mortalha esculpida

Hoje, visitei o ateliê de Nêgo em Nova Frigurgo (RJ). Cearense de 74 anos, foi reconhecido pela arte entalhada em madeira. A primeira escultura do Jardim do Nego data de 1981: uma mulher negra, linda e nua. A mistura de barro e pedras tem curvas majestosas e insinuantes e é coberta por um aveludado musgo. Inspiradora...
Nêgo viveu 12 anos em reclusão e, nesse período, passou por fome, reconstrução e epifania. De seu passado, ouve-se ecos de um roubo sem provas, um hippie de violão, um filho reaproximado e mulheres, muitas mulheres. Suas esculturas confirmam as histórias e voltam os olhos da nova Suíça para a beleza e a fome de um Ceará agreste.
                A grandeza da arte de Nêgo ultrapassa o tamanho de suas esculturas. O corpo feminino ora exala sensualidade, ora flana ébrio, ora pare contorcido. A criança ausente na vida é gigante e meiga escultura. Autorretratos do artista espalham-se nos rostos de homens e mulheres de barro que erguem mãos e olhos para os céus.
                Nêgo declama a liberdade do corpo etéreo. O artista explica que energia universal atravessa o ser humano e o move para suas realizações. Seu chacra da terceira visão protegido e o recente estado celibatário são suas formas de concentrar energia libidinal no plexo solar. O corpo capta e abriga essa energia e ela retorna ao universo ao perecermos. Instigante filosofia.
                Quando vi os olhos vazados das esculturas, por um momento pensei: são cascas ocas. Após construir suas estátuas gigantes de barro, Nêgo precisa regá-las duas a três vezes e cobri-las com uma lona. Este processo favorece o crescimento de uma macia superfície de musgo que as protege. Sem isso, a obras ficam ressecadas e se quebram.
                A vida artística de Nêgo é a metáfora de sua filosofia. As mãos do grande criador mantêm viva a sua obra. Trabalho paciente e persistente que garante a integridade de suas esculturas há 35 anos, mais de metade se sua existência.
Após 12 anos de exílio e privação, Nêgo investe em seu Jardim. Obras destruídas pela tragédia friburguense de 2011 foram reformadas e outras construídas. O Jardim do Nêgo tem sua infraestrutura melhorada tendo em vista turistas, admiradores e investidores.
A casa do escultor é ampliada, para aconchegar um Deus que precisa dedicar sua vida pela criação. Por uma epifania, ele já sabe disso, resigna-se com tudo. Talvez, essa seja a vida até sua morte: um possível Enterro prematuro de Poe.

Cris Couto, 12/07/2016

Sou Cris Couto: mulher, negra mãe e escritora. 

Publico no blog Flor do Dia: Coletivo do Bonde às quartas-feiras

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