E então a vida estava toda certa.
Ela já sabia o que ia fazer do resto todo da sua vida aos 17 anos. Todo o
planejamento tinha funcionado. E então? Já estava fora de casa como queria, e ia
estudar muito, fazer mestrado, doutorado, viajar pra outro país, talvez. Tudo
tão cedo. Tudo tão imenso. Viu-se um dia deitada no chão, olhando pro céu
estrelado e infinito, e pensando: “Cheguei onde queria”. Cheguei no fim do
plano. Tudo tão imenso. A solidão atordoante do espaço infinito que a deixava
flutuando no meio do nada. Mas como flutuar livre podia ser tão pesado? De repente
entendeu que a vida já parecia toda traçada, definida, anunciada. Porque só
tinha importância quem era doutor. Ou não?
Fugiu. Foi rezar. Foi tomar café na
casa da dona Maria na favela. Entender suas histórias. Foi cuidar de criança e
ouvir desabafo de bêbado. Quis humanizar-se. Vista como santa ou maluca. Andou
pelas ruas levando aconchego, aprendeu a falar manso. E achou que aquilo tudo
parecia mais importante do que ser doutor. Mas então veio a consciência, tão
doída. Sua vida seria aquilo, até o fim de seus dias. Num determinismo
apavorante. Ela faria a promessa de permanecer ali pra sempre. E teria que
ficar.
Impossível. Um dia viu-se quase
sem querer do lado de fora. Recomeçando, pela segunda vez. Então, seguir a vida
igual quase todo mundo. Casar e ter filho. Simples. Ser comum. Descobrir como é
isso de seguir a natureza das coisas, conforme lhe diziam. Casou e teve filho.
E a descoberta sufocante, aterrorizante, de que nunca mais deixaria de ser mãe.
E que poderia ir pra onde quisesse, desaparecer o quanto fosse, o filho
continuaria existindo. Era a primeira coisa definitiva da sua vida. A primeira coisa
que conseguiu criar raiz no seu amor. Se não havia como lançar fora, o menino
foi ficando. E ela entendeu que era bom. Mas ainda assim, a vontade de ir
embora era imperativa. Impossível desobedecer.
Sozinha. Tentando entender quem
poderia ser, então. E por quê todo mundo parecia estar tão confortável nas
seguranças e certezas, enquanto que pra ela a vertigem do abismo era soberana.
Ela sempre tinha que pular pra fora de tudo o que a agarrasse. As vezes o pulo
era do alto, e despedaçava bastante, deixando-a em carne viva. Ela levantava e
seguia em frente, sem olhar pra trás. Por quê? Pra onde? Procurando o que?
Ela nunca soube.
Voltou a refazer caminhos já
trilhados. Talvez houvesse esquecido lá alguma velha chave. Que abrisse a porta
pra algum lugar digno de ser chamado finalmente de lar. Porque nunca tinha morado.
Apenas ia ficando, até já não suportar. Ia ficando.
Naquele dia, a música tocava: “Me
diga como você pode viver indo embora sem se despedaçar.
E ela chorou. E teve vontade de gritar
pra sempre.
Me encontrei aí.Lindo texto, amada.
ResponderExcluirLágrimas! Lindo e forte!
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