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quarta-feira, 29 de junho de 2016

ACORDA, NEGA! por Cris Couto

Anjos da noite


Lia tinha nove anos, era muito alegre e brincalhona. Adorava passar dias na casa de sua avó Joana. Finalmente, as férias chegaram e Lia estava na casa da avó.

Gostavam de tudo que faziam juntas: plantar flores, brincar com as gatas, correr com cachorros e ouvir histórias. Todas as noites, antes de dormir, vó Joana sempre tinha uma história de suas peraltices de infância para contar antes do boa noite: colher frutas, pular no lago, fugir de cachorros, comer bolo escondido.

Os primeiros dias das férias seguiram tranquilos. Na terceira noite, algo diferente aconteceu. Lia já dormia gostoso quando percebeu um barulhinho ao longe. Abriu os olhos. Aquele barulhinho era um choro baixinho de criança. E tinha outra criança além dela naquela casa?

Num pulo, levantou da cama. Colocou seus chinelos e abriu a porta. A casa da avó era um sobrado e os quartos ficavam na parte superior. A porta do seu quarto era de frente para a escada e, ao seu final, estava a sala. Foi até a beira da escada e coçou os olhos para enxergar direito. Sim, havia uma criança caída lá em baixo, chorando.

A menina desceu as escadas e se aproximou. De perto, ela viu direito: era um menino, um menino-anjo, que sofria com a asa quebrada. Lia viu as lágrimas e pôs a mão em seu rosto.

- Como posso te ajudar?

- Me leva de volta pro céu.

O medo sem fim que tomou conta de Lia foi apaziguado pela mão do anjo. Naquele momento, asas rasgaram sua roupa de dormir. Ela estava segura quando colocou o anjinho em seus braços e voou pela sala, saindo pela grande janela aberta.

Chegando no céu, Lia deitou o anjo em uma nuvem macia. Outros anjos apareceram: eram adultos e crianças com asas. Eles ficaram em volta do pequeno que ainda chorava e impuseram as mãos sobre a asinha quebrada. Aos poucos, as penas ficaram alinhadas e bem presas às costas do menino. Suas lágrimas cessaram.

O menino anjo ficou de pé e balançou a asa. Sem medo, deu um pulo e logo bateu suas asas em um lindo voo. Aterrissou ao lado de Lia para agradecer.

Ela estava feliz por ter ajudado, mas como voltar para sua vida de asas nas costas? Escutou do vento:

- Você pode voltar, mas sem as asas.

Lia aceitou o acordo, tirou suas asas e as deixou, cuidadosamente, a sua frente sobre uma nuvem. Logo, a nuvem guardou aquelas delicadas plumas em seu infinito.

O anjo curado carregou Lia de volta para a casa da avó. Só naquela hora ela se deu conta de como a noite estava bonita e o céu tão estrelado. Na sala, o anjinho colocou Lia no chão e lanço- lhe um olhar terno de gratidão. Ainda em silencio suave, voou pela janela em um rasante lindo rumo ao sol. Já amanhecia.

Quando só avistou as nuvens, Lia fechou a janela da sala e subiu as escadas de volta para seu quarto. Ela sentia a dureza dos degraus sob seus pés. Ao deitar-se na cama, ouvia os latidos dos cachorros.

Durante o café da manhã, vó Joana ouviu com a serenidade dos idosos a empolgante história da neta. Seu olhar era longo e amoroso e, a cada pausa de Lia, repetia baixinho:

- Crianças sonham, crianças voam, crianças crescem.

Cris Couto, [25/10/2015] 29/06/2016


Sou Cris Couto: mulher, negra mãe e escritora. 
Publico no blog Flor do Dia: Coletivo do Bonde às quartas-feiras
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